Barbearia premium (Conto)

“É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver” – disse a mulher do médico  – José Saramago (Ensaio sobre a cegueira).

 

Caro leitor, em primeiro lugar quero agradecer as visitas caso não tenha desistido do blog e em segundo me desculpar caso seja um dos que acompanham minhas publicações. Com um longo atraso posto o último texto da terceira temporada do Devaneios Irrelevantes, a qual infelizmente termina antes (e bem antes pelo visto) da quarentena. Na semana que passou o Brasil registrou a triste marca de 100 mil vítimas da COVID-19, um tragédia que não deve e não será esquecida para aqueles que tem algum compromisso com o futuro. Como estudante de história tenho que ser otimista em acreditar que o momento vai passar e o tempo vai sim condenar os culpados ao lugar que merecem…

Até a volta…

 

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Lembro da primeira vez que matei… mas nunca tive razão para fazê-lo, era só sede de sangue mesmo, algum tempo com a vítima e já ficou fácil perceber que demorariam a sentir falta dela, mais ainda, ninguém sabia que ela tinha saído ou onde tinha ido, já no fim da tarde de trabalho, encostei a porta da minha barbearia e quando estava terminando de raspar a garganta daquele homem, desferi um único golpe horizontal que não permitia a ele nem uma palavra de despedida.

O sangue jorrou no espelho e formou uma imensa poça no chão, mas o saciar da minha sede fora muito efêmero e logo percebi que com a barbearia limpa só precisava esperar uma nova oportunidade. E elas sempre aparecem, afinal, só eu conheço o passado sangrento do estabelecimento… e o movimento perfeito elimina qualquer tamanho e história que esteja sentada nessa cadeira… a mesma cadeira… depois descarto o corpo em algum barranco ou trilho de trem pouco visitado… 

Algumas vezes a notícia aparece no jornal da cidade, mas nem tenho muita certeza se trata de um dos homens que eu vi morrer bem aqui… nunca guardo muito bem a fisionomia de nenhum deles… só enrolo uma toalha no pescoço pra não sujar meu porta-malas, passo os produtos no chão e as dez da noite estou em sono profundo e meu comércio apto a receber mais clientes…. alguns muito fiéis inclusive… e esses eu não quero perder de nenhuma forma…

Quando entram pela porta eles sempre sorriem, nunca esperam o fim de uma maneira tão fútil… na verdade, eu também não faço planos com antecedência… quem são ou eram essas pessoas? quem pensam ou pensavam que eram… o que faziam? O que pensam quando percebem que estão no chão para nunca mais se levantar… Será que tinham algum dinheiro? Nunca tive sequer a curiosidade de abrir as carteiras… pois atrás da navalha, não existe defesa…

7 comentários em “Barbearia premium (Conto)

  1. Em 2018 comecei a ler essa obra de José Saramago, li muitas das páginas encolhida no meu sofá. Quanto mais eu lia, mais assombrada e ansiosa me sentia…
    Entrei na história na pontinha dos pés, como alguém entrando numa floresta escura e fechada, fui explorando… mas depois saí correndo, bem perto das últimas páginas, não quis saber o final.

    Passei muitos dias me questionando: será que estou vendo tudo que está na minha frente? Será que não estou vivendo no automático? Será que posso administrar uma situação assim ao meu redor?

    Não consegui mesmo terminar, fiquei em choque com o decorrer da história… E sim, não houve um só dia desde que comecei a ouvir as notícias sobre a pandemia em que eu não tenha me sentido como se estivesse relendo ‘Ensaio sobre a cegueira’ outra vez.

    Adorei ler a sua reflexão!

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  2. Não sei se foi intencional ou acidental, porém gostei de como a primeira parte do comentário político se conectou com o conto que retrata a banalidade do encerramento de uma vida humana, pelo simples fato de estarem reunidas as circunstâncias de querer e poder. Obrigada pela leitura, voltarei mais vezes!

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