A AULA (conto)

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… 10:40, mais um professor entrou na sala… “atenção… chamada… 1”, “presente”! “2”… “3”… “presente”! “4”, “presente”! “5”… “presente”!… “6”… “faltou”! “7”, “presente”! 8, “faltou”… “Professor, o 2 tá presente”… é a quinta vez hoje que um professor faz a chamada… é a quinta vez que os mesmos respondem, esquecem ou estão pra fora… ”Vamos  retomar nossa discussão anterior, onde paramos”!?… tb não sei… Será que eles acham que enganam alguém mesmo com esse papo de “ser alguém na vida”… até parece que eu não sei que eles são um bando de fodido igual a gente… até parece que eu não sei que eles não tem a menor ideia do que se passa nas outras aulas antes e depois de entrarem na sala vomitando um conhecimento supostamente útil…

Professores, o diretor, meus pais… até parece que realmente acreditam no que falam… como se a escola fosse um universo paralelo… como se aqui dentro não existisse drogas, furto, traição, violência… o professor entra, fala em problemas urbanos, miséria, mazelas sociais… mas não se toca que tudo isso está presente aqui dentro… pior ainda, finge que não percebe… e finge que estudou muito pra falar o que fala…finge que não assistiu um vídeo no youtube que tinha tudo que ele precisava pra hoje, o que vai passar o migué de fazer qualquer atividade do livro…

Tive boas notas no ensino fundamental inteiro, nos primeiros anos de ensino médio também… agora no terceiro caiu minha ficha e eu não vejo a hora de terminar logo o ano e nunca mais precisar pisar nesse lugar… não vi nenhuma oportunidade surgir aqui dentro, nem tenho expectativa de utilizar minhas boas notas para encontrar um emprego… me ensinaram o que é exploração na aula de sociologia e que ironia, o máximo que eu posso conseguir é ser explorado… posso ser um “cidadão de bem” explorado! Ser alguém na vida… pra garantir as drogas do fim de semana!

Tenho motivação pra terminar o ano e me formar, mas a escola é um estorvo… mais de uma década pensando e acreditando no futuro e a única coisa que sei mesmo fazer é responder a chamada… e é tudo que eu tenho que fazer nesses últimos meses… talvez eu até tente uma faculdade em um futuro próximo… mas antes eu tenho que pensar em aguentar a escola… suportar ser tratado como uma criança que não “sabe o que quer”… um ou outro professor até pergunta, nunca sei se ironicamente ou sério… mas eu não respondo a verdade, porque eu só quero que 12:20 chegue logo… que toque o sinal pra eu sumir! Que o último sinal da última aula de dezembro chegue logo pra eu poder cuidar da minha vida de fato… lá vem ele… “pág 202 do livro, questões de 1 a 5”… blz… vou fazer professor…

Aula sobre revolução francesa, iluminismo, Rousseau, Montesquieu… lembro vagamente de ter visto esses temas antes… “Liberdade”.. outra ironia… democracia, direitos… me parece um assunto pertinente, interessante… eu quero saber o que isso significa… mas não entendo bem a razão deles estarem nesse livro e nessa aula… vou copiar um trechinho do livro que contemple a questão e garantir meu visto, meu cinco e minha passagem pra longe daqui… 11:30, sinal (barulho irritante!)… estou mais perto do fim do ano que no início da aula…  a próxima e última de hoje: educação física… pelo menos isso, vou poder ir pra quadra e jogar bola, tentar me divertir… o tempo passa mais rápido lá… “bom dia pessoal, hoje a aula será teórica e dentro da sala, vamos falar da história e das regras do vôlei”… Puta Que Pariu!!!

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Putz, que bosta, eu tô fudido mesmo, não tenho certeza nenhuma do meu papel neste mundo, nem do meu trabalho… pior ainda, o papel que eu acho que eu tenho é impossível de ser desempenhado, realizado, tô sem esperanças de sucesso com essa aula, ou melhor, esse caos que tento chamar de aula. É constrangedor falar de democracia em um ambiente como o da escola… para jovens com tão pouca representatividade… aqui dentro e lá fora… o grêmio estudantil no máximo pode escolher as músicas de amanhã no intervalo… quantos deles será que percebem o absurdo que este sistema reproduz… as vezes eu acho que todos… por isso causam tanto… não há razão para respeitar os deveres, quando os direitos não estão nítidos, ou quando são simplesmente negados…

Minha condição é meio bizarra… pois eu sinto um misto de dever cumprido e impotência… como se meu trabalho estivesse feito… mas nenhuma oportunidade pode surgir dele… a molecada continua fodida, sem noção dos direitos, sem expectativas e nem das possibilidades de trabalho que poderiam explorar ou das experiências sensoriais fantásticas que o mundo tem pra oferecer… pior ainda… parece que consideram apenas a possibilidade de incorporar uma multidão desempregada… a escola tá parecendo uma evacuação social… quando o terceiro ano acaba, a gente puxa a descarga… e o aluno tá livre pra ser explorado onde bem entender. Às vezes até finjo que não sou tão fodido quanto eles, talvez possa motivar… mas parece evidente que eles percebem… como se todos pensassem a mesma coisa, mas ninguém tem coragem suficiente pra falar… mas é o meu trabalho… vamos lá… chamada, já que na quinta aula e a escola ainda não sabe quem faltou… e daqui a pouco a inspetora bate na porta pra anotar os números de quem não está em sala…

Aula sobre “direitos”, “democracia”, “liberdade”, “poder”… o assunto interessa, mas não motiva, não cativa, não encanta… “página 202, questões de 1 a 5… me chama se estiver com dificuldade”… um ou outro vão só copiar um trecho qualquer do capítulo… o restante vai esperar o tempo passar… vale um visto, dois talvez, mas no fim, estarão todos aprovados… talvez a minha forma de ajudar seja garantindo a nota que ele precisa pra sair da escola… o máximo que eu posso fazer, é incentivar a leitura para que as oportunidades surjam!… “manda ver brother… tenta o vestibular… é melhor que ficar miguelando serviço que nem louco lá fora… tenta aproveitar o pouco de conteúdo que você tem acesso… lê esse livro pé no saco que é possível passar, você não precisa gabaritar, só do mínimo, não precisa passar em medicina e engenharia, tenta outro! Esse sinal irritante tocando pela quinta vez, vou pra casa correndo porque nem tenho a última hoje…

“Professor, por favor… temos uma aula vaga… vc pode eventuar no 1º A agora”?… não tenho nada preparado, mas nesse mundo de fodidos, qualquer trocadinho a mais faz a diferença… “seria a aula de física, ok?”… vou ter que inventar um miguézão, mas ninguém nem vai ficar sabendo, na prática vai ser uma roda de conversa sobre democracia (porque acabei de falar sobre isso em outra turma), talvez outro tema, drogas?… polêmico demais… pode ser um filme que eles começaram e não terminaram… se der, vou incitar um ou outro a ler, talvez seja polêmico também…

5 comentários em “A AULA (conto)

  1. “bom dia pessoal, hoje a aula será teórica e dentro da sala, vamos falar da história e das regras do vôlei”… Puta Que Pariu!!!

    Eu ri.

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    1. Bom dia…. obrigado pela leitura e pelo comentário…. e desculpe pela demora na resposta….
      mas e aí, riu pq se identificou? Não sei nem responder se tenho saudades de situações como essa…. kkkkkkkkkkkkk

      abraços….

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